11/30/2012

Editor em tempos de mudança

Fonte: Salon.com


Na sequência do post do João Carlos Alvim, resolvi dar a minha própria visão do assunto; em larga medida suscitada também pela «conversa» entre José Afonso Furtado e Gustavo Cardoso, na terça-feira passada.

Não haja dúvida, os tempos mudaram, a nossa vida é digital.
Vivemos num mundo onde tudo se regista e todos os nossos atos são informação a ser tratada, trabalhada e utilizada; um mundo onde a verdade é consumer driven, tanto nas hierarquias e temáticas, como nas visões e nível de desenvolvimento. Por outras palavras, não conseguimos acompanhar a mudança tecnológica operada pelo mundo digital, tendo esta destruído o sistema de mediação existente, e ainda nada surgiu para o substituir: andamos à deriva.

Não sabemos o que nos jornais é verdade ou importante (a própria função do jornalista deixou de ser de mediação, para ser de replicação ou criação de informação, com o objetivo de se construírem produtos adequados às necessidades financeiras – de angariação de públicos e de publicidade), o que no Facebook é mentira, idiotice ou equívoco, o que nos livros é pertinente ou de qualidade. Na falta de mediadores capazes e vocacionados para o mundo digital, surgem os «gurus» da opinião pública (os famosos opinion makers, com ideias sobre tudo e mais alguma coisa), vulgarizando o conhecimento numa versão de Wikipédia humana.

O editor, elemento histórico de mediação entre os milhares de conteúdos existentes e o público, deixa cada vez mais de o ser: só nos EUA 50% das publicações são publish on demand e, mesmo entre os restantes livros (edição comercial), a quase totalidade da produção não depende da mediação de qualidade ou de pertinência, de ética ou responsabilidade, mas da avaliação mercadológica da obra. «Adequação» passou a ser um termo demasiado utilizado para explicar esta potenciação das desigualdades de conhecimento e esta desresponsabilização sobre a pertinência das coisas na sociedade. Adequação ao público: se ele quer lixo, é lixo o que se lhe dá; adequação aos parceiros comerciais: prioridade ao aumento das rentabilidades, através do reforço de premissas como a velocidade e o volume das vendas, bem como outros fatores potenciadores (estratégias de preço baixo, campanhas, star system e obras de elevada plataforma de acesso a público) ou contribuintes diretos dos resultados financeiros (venda de espaços, participação em catálogos, etc.), pois são empresas e o «adequado» para uma empresa é ganhar dinheiro, e não ajudar a sociedade.

Já não é possível saber onde está nem como aceder à qualidade (na definição social de livro de qualidade como objeto pertinente, fidedigno, consistente, eticamente responsável e com benefícios para o aumento do conhecimento e da cidadania) por falta de interesse de todas as partes, pelo excesso de informação, pela maior pertinência de premissas económicas de triagem, pela alteração da política de acessos aos canais e de validação dos conteúdos.

O livro, antes o objeto referencial − aquele que era feito para refletir, para analisar − perde para o público atual a sua função, transforma-se na próxima vítima da mudança digital. Não é o «livro digital» que irá destruir «os livros», é a incapacidade de percebermos que sociedade queremos e qual o seu papel.

É hoje mais importante saber que se «pode aceder a qualquer momento» à verdade com uma ida ao Facebook ou à Wikipédia, do que ler de facto os artigos, livros e enciclopédias (maioritariamente online), pensados e analisados, construídos com interação de múltiplas fontes e cuidados éticos definidos.

Tal como se vê a morte dos jornalistas ou dos bibliotecários, os outros mediadores como os editores (e posteriormente até os professores e os educadores) arriscam-se a perder a sua função no mundo nesta fase de mudança e confusão. E já faltou mais para se começar a ponderar na necessidade real de educação formal, pelo menos da base humanista dessa formação.

Neste mundo em mudança os agentes esquecem-se de que as humanidades são a principal ferramenta que temos para pensar (a língua, história, geografia, filosofia, etc., são a raiz da estruturação mental, da interpretação do mundo e da lógica de construção e de atuação nele, tal como a matemática o é para as engenharias). Não saber relacionar, não ter referências históricas, geográficas ou de enquadramento de pensamento é incapacitar os nossos jovens até para a mais simples das ações relacionais (para saber mais ler Marshall McLuhan). Aquilo que para nós é um dado adquirido, para muitos novos públicos é uma incógnita e até o uso do Google para algo diferente daquilo que estão habituados (procurar música, séries, famosos, etc.) poderá ser como uma viagem na selva para um miúdo da cidade (ler também este artigo sobre a forma como o Google transforma a nossa atividade cognitiva).

Mas a necessidade de mediadores nunca foi tão grande. Cabe só aos mesmos mediadores, entre eles os editores, voltarem a provar ao mundo o porquê da sua existência e não demitirem-se da sua função; antes de passarem a ser obsoletos; antes de os livros passarem a ser escolhidos por um gráfico Excel e os textos trabalhados por um qualquer Google editor ou translator.

Nuno Seabra Lopes

10 comentários:

  1. Nuno, haveria muito a dizer sobre o assunto, mas o tempo disponível só me deixa discutir um ponto:

    «O livro, antes o objeto referencial − aquele que era feito para refletir, para analisar − perde para o público atual a sua função, transforma-se na próxima vítima da mudança digital. Não é o «livro digital» que irá destruir «os livros», é a incapacidade de percebermos que sociedade queremos e qual o seu papel.»

    Há muito que o livro não é apenas «objeto referencial − aquele que era feito para refletir, para analisar». É sobretudo um veículo muito versátil para tudo o que se queira. Há séculos que livro é sinónimo de entretenimento, de fantasia e de falsidade e contradição, não apenas de conhecimento. E «form follows function». É natural que, com os seus diferentes fins, o livro assuma diferentes formatos. «O digital» não é uma ameaça externa que se impõe, é o desenvolvimento natural para alguns tipos de livros dada a tecnologia ao dispor.
    O que gera confusão é chamar-se às diversas espécies de livros, que evoluem de forma distinta, «o livro». Torna-se fácil sacralizá-lo ou condená-lo à morte. O mesmo é válido para «o editor».
    Os livros persistirão independentemente da natureza da sociedade em vigor. (A menos que vivamos num qualquer mundo distópico, claro.) Serão é sempre um reflexo dela. Se a sociedade muda, os livros mudam. A forma de organizar informação chamada livro não é só útil, também é flexível e tem estado a ser adaptada a novos contextos. Não há «morte pelo digital», há transformação pelo novo paradigma. Um paradigma no qual os livros e seus mediadores, sejam eles quais forem, terão o seu lugar. Estamos é a atravessar uma fase de transição em que esses papéis não estão tão definidos como outrora. Mas não vale a pena catastrofizar.
    Independentemente da organização social e do nível de desenvolvimento tecnológico, o discernimento, os valores morais, o amor à arte e a vontade de descobrir a verdade têm sido (mais ou menos) constantes da humanidade. Não vejo motivos para acreditar que deixará de ser assim. Os livros têm feito parte da nossa história. Não vejo motivos para acreditar que deixará de ser assim.

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    1. Cara Rita (?) muito obrigado pelo comentário, que é extraordinariamente pertinente e no qual concordo com a quase totalidade.
      Não quis dar uma imagem catastrofista (apesar de perceber que o tom e a sequência se aproximam dele).
      De facto pareço só falar de obras de não-ficção desenvolvidas quando deveria ter alargado o espetro. Não considero que o facto de um livro ter várias funções se possa dissociar da noção de qualidade. A fidedignidade, a consistência e até mesmo o benefício social estão presentes em as obras que vão da literatura até ao mais básico romance cor-de-rosa ou outra qualquer categoria. Não é uma questão de tema ou função que lhe atribuem qualidades adicionais, mas sim o facto de ele ser bem feito, que traga algo às pessoas, nem que seja escape ou distração.
      Concordo também que o digital crie outras formas de ler, de perceber ou utilizar os objetos, mas o uso constante das tecnologias também nos tem transformado profundamente; atos como o da leitura linear prolongada tornam-se cada vez mais complexos para pessoas habituadas a fazer skimming de textos, a saltar após terem lido um parágrafo. O facto de termos tudo disponível ao clique faz com que deixemos de usar a memória, o que acarreta outros problemas importantes para a cognição.
      Mas sim, são duas funções, deveriam ser efetivamente dois formatos. Da mesma forma que um twitt não é um post, ou uma carta não é um artigo de jornal, para mim um livro digital enhanced (com hiperligações, vídeos, animações, etc.) não é um livro impresso e isso nada tem a ver com o formato. Duas funções, dois consumos distintos, dois resultados e impacto distintos no nosso cérebro. Quando me refiro ao livro, refiro-me a um objeto que cumpre uma função que ainda é essencial na nossa sociedade, pois traz benefícios que os outros objetos não conseguem replicar (e é um erro achar que sim). Da mesma forma que a leitura em voz alta traz benefícios diferentes da leitura silenciosa.
      Não nos devemos esquecer que o nosso cérebro é adaptativo, conforme sente necessidades, dificuldades ou facilidades ele adapta-se, desenvolve-se ou desliga. Se o trabalhamos de uma determinada forma conseguimos chegar a um determinado sítio, se o fizermos de outra forma, não o fazemos.
      Para mim esse «livro» é um exercício fulcral para o desenvolvimento do cérebro a um patamar mais alto de pensamento, da mesma forma que os paradigmas da filosofia ou das ciências também o são. Numa metáfora mais física, se não fizermos exercícios porque tudo está ao nosso dispor ficamos gordos, pouco saudáveis e incapazes de executar atos básicos de coordenação motora não habitual.
      Por fim concordo que os livros mudem com a sociedade, mas a sociedade somos nós e também é possível mudá-la com os livros. E sim, a capacidade e a curiosidade humana sempre nos surpreendeu, mas não devemos deixar tudo à conta dessa esperança, pois se nada se fizer para a potenciar, estaremos sempre uns passos atrás do que poderia ser. Uma atitude comodista é demasiado simples e quase todos nós, com as necessidades básicas garantias, tendemos para a inação. Mas se calhar estou a ser de novo catastrofista.

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  2. Embora proferidas noutro contexto - a apresentação de «A Edição em Portugal (1970-2010); Percursos e Perspectivas» - penso que tem cabimento na troca de comentários a este post, reafirmar o que então disse:
    "A última palavra é de sadia esperança, especialmente para os jovens académicos, profissionais e estudantes que agora dão os primeiros passos neste mundo fascinante. As alterações que advêm da revolução digital e dos novos modelos de negócio praticados por empresas que entraram no mercado editorial e livreiro, mas não estão no mercado da cultura (Amazon, Apple, Google), abrem horizontes para que os leitores necessitem, cada vez mais, do conselho, da credibilidade e do know-how específico das gentes do livro. Cabe-lhes pois fazerem o futuro acontecer, encontrarem o caminho certo e utilizarem os meios adequados. Os exemplos de sucesso que permanecem e aqueles que vão surgindo a cada momento, permitem acreditar que os desafios a enfrentar num futuro diferente não são necessariamente mais agrestes do que as dificuldades vencidas ao longo das quatro décadas abordadas neste livro."
    Rui Beja

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  3. Muito bom. E não me apetece acrescentar nada.

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  4. Grandes verdades, Nuno. Ainda assim permite-me que troque a noção de qualidade pela única possível de sustentar nos dias que correm (ler o fabuloso ensaio da Natalie Sarraute "A Era da suspeita" - em bibliotecas que a edição da Guimarães está há muito esgotada).

    Se em vez de "qualidade" considerarmos que a intervenção do mediador confere sobretudo uma identidade, talvez seja mais fácil de nos defendermos de um mundo que suspeita de todos os mediadores e de todos os opinion makers.

    A qualidade é algo que apenas é definido pelo tempo e pela sua peneira (para a qual contribuem factores de todas as ordens), mas se olharmos para a História da Edição veremos que a qualidade acaba por ficar a associada a marcas/colecções às quais o editor conferiu uma clara identidade (a coragem de assumir as suas escolhas, de definir estratégias intelectuais).

    Por outro lado tinha há muito prometido uma resposta à Deana Barroqueira sobre a questão - que também tocas - do lixo editorial. Essa é uma questão que merece abordagem mais completa que ainda não tive tempo para fazer mas de uma forma simplista permite-me abordá-la.

    A minha avó dizia essa verdade intemporal: "todo o burro come palha, a questão é saber-lha dar". A questão do lixo que se publica deriva de um sistema enquinado em que a decisão de edição já não é do editor mas de gestores e estatísticos. estes sabem, pela análise dos números que o mercado consome lixo mas estão-se nas tintas para o facto que essa faixa de mercado consumidor de lixo, caso lhes fosse oferecido algo melhor, também o consumiria. E como a obrigação moral da melhoria da sociedade não passa pelas funções de um gestor, nem se podem contemplar os riscos inerentes de uma opção empenhada contra a garantia da solução facilitista... A coisa resolve-se por si. Se a isso adicionarmos que para produzir lixo não se tem de contratar um bom editor ou formar bons autores, tudo ainda parece melhor.

    É mais um sinal da sociedade que trabalha para a mediocratização, para a medianização (apontada por baixo) do valor e que leva à falência dos modelos políticos, sociais e culturais, e mais tarde ou mais cedo, à falência do próprio modelo social.

    O Humanismo trouxe-nos o Homem ao centro, mas este homem é a Humanidade; a democratização do acesso ao poder, trouxe a umbiguização.

    Por último e quanto ao livro digital, tenho, de há muitos anos, uma opinião clara mas, como sempre, algo extensa, pelo que fica para mais adiante em espaço próprio bem como uma resposta mais detalhada à questão colocada pela Deana Barroqueiro num comentário a um dos primeiros posts deste blogue.

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  5. E nessa panóplia de informação e desinformação, esquecida fica a base e a essência de transmitir algo a outrem. Por muito encantadora que seja uma retórica exposta num livro, num artigo, numa peça jornalística, o que mais esquecido tem sido é o fornecimento de dados que permitam uma individual e congruente interpretação.

    Será de imaginar que o(s) valor(es) de simplesmente dar algo a conhecer, hoje, mais que nunca, esbarre numa demagoga busca de louvor.

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    1. Tem a ver com as funções dos objectos. Mas entre os diferentes livros há os que têm uma função diferente da informativa, e até os que não pretendem a interpretação (surrealismos, por exemplo).
      E por mais triste que possamos achar, a busca de louvor sempre esteve presente na literatura, às vezes com vantagem, como no Ulisses, de J. Joyce, que não passava de uma gabarolice, de um gajo a tentar (e a conseguir) provar ao mundo de que era capaz daquele milagre da técnica.

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  6. Entramos aqui em campos perigosos mas arrisco-me a dizer que o problema advém das bases teóricas do modernismo. A abolição de modelos,a destruição do edifício literário e a noção de que o escritor escreve para si e já não tem de ter uma preocupação social quando escreve artisticamente... vem tudo daí.

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  7. Eu não iria tão longe, Hugo. Para além dessa alteração ser já reflexo dos tempos, desde logo ao mundo em industrialização.
    Além que a alteração revela-se a todos os níveis na sociedade e não só na literatura.
    Quando se vai rápido demais perdem-se coisas importantes, esse é o problema. O homem e, mais ainda, a sociedade atual não têm capacidade para evoluir à velocidade da técnica, mas que a técnica afeta a sociedade, isso afeta, e bastante.
    Podes até inventar o lápis, isso não significa que o mundo o saiba usar bem (haverá algum episódio do CSI onde até o deverão usar como arma perfurante...).

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