2/06/2013

O Livro de Bolso, uma história não tão recente

Um dos elogios que é regularmente feito a Francisco Lyon de Castro é o de ter sido o introdutor do livro de bolso em Portugal. Não querendo de forma alguma retirar o grande mérito desse grande Editor - mérito esse que abordarei mais adiante - , creio ser necessário um pouco de esclarecimento histórico em torno deste assunto.

Antes de Lyon de Castro havia já "livros de bolso" em Portugal. Não tinham esse nome mas o conceito e até boa parte dos mecanismos de divulgação e promoção eram os mesmos. Desde os anos 30, por exemplo, a Civilização tinha a sua colecção de grandes obras a pequenos preços. A Lello iniciou a sua pela mesma altura mas a história não principia aí.

Historicamente e a nível internacional, a designação "livro de bolso" surge de uma colecção iniciada em 1905 pelas éditions Jules Tallandier de Paris. A maior difusão começa, contudo, no mundo inglês, nos anos 30 com as edições da britânica Penguin e nos EUA da Pocket Books (hoje em dia uma divisão da Simon & Schuster). Apenas nos anos 50 e em virtude do sucesso do modelo inglês regressa ao mundo francófono através da Livre de Poche que reunia a participação de diversas casas editoras sob a regência de Henri Filipacchi. Mas estamos apenas a falar da designação "livro de bolso". O conceito em si era bem mais antigo e de invenção francesa.

O conceito é simples: oferecer literatura a baixo preço através de um formato pequeno e "portável". Inerentemente a este conceito subjaz sempre a necessária maior tiragem, absolutamente vital para compensar o editor da menor margem que retira das vendas.

Com efeito, com a massificação do acesso à obra literária, desde finais do século XVIII que edições baratas tinham tomado o lugar da famosa literatura de cordel. Em termos sociológicos é interessante verificar como autores mais ou menos comerciais começam a entender e orientar a sua escrita para um público mais generalizado. Historicamente não surpreende que essa transformação acompanhe igualmente a explosão da imprensa escrita e coincida, por sua vez, com as diversas revoltas político-sociais que marcaram esse final de século.

Nunca se saberá, imagino, quem primeiro teve a ideia, se um autor se um editor, mas a verdade é que, com o começo do século XIX, surgem também as primeiras "edições populares". Os grandes autores vêm as suas obras serem publicadas num formato de prestígio e posteriormente numa edição popular, bastante mais acessível, menos dispendiosa e consequentemente facultada a um preço bastante mais baixo, chegando, desse modo, a um público mais abrangente.

Num percurso paralelo a esse, uma literatura mais popular, de certa forma descendente directa da literatura de cordel, apanha o comboio do neo-gótico de finais do século XVIII (que virá a estar na base dos géneros policial, de terror, do Thriller ou da Ficção-científica), e toma de assalto o mercado do livro. Edições diversas das obras de Ann Radcliffe, Walpole e tantos outros no mundo inglês, de Soulié ou Sue em França (com imensos seguidores), introduzem a literatura de emoção (próxima mas ao mesmo tempo longínqua do melhor Samuel Richardson) a um público ávido de distracção e que tem no acesso ao livro e à leitura a grande distracção.

Estas edições apareciam quase todas de base em formato "popular": pequeno formato, materiais de menor qualidade, baixo custo de produção e reduzido preço de venda em tiragens de vários milhares. Como a imprensa era ainda tipografia manual e a velocidade e quantidade de impressão condicionada, os editores faziam as estimativas comerciais das suas vendas pelo género ou pelo autor, calculando, desde o princípio, que o livro atingiria impressão de mais ou menos de "x" milhares. Assim, os editores sabiam que o break-even point da produção de um livro em altas tiragens só seria coberto após diversas tiragens. Curiosamente um tipo de raciocínio que seria bastante útil fazer-se hoje em dia.

Já agora e por uma questão de precisão histórica, a maior parte das ditas "edições populares" mesmo aquelas que tinham formato maior do que os maiores livros de bolso dos nossos dias, cabiam nos enormes bolsos dos populares da época. Bolsos que eram igualmente usados para transportar intrumentos de trabalho e tudo o mais de que houvesse necessidade.

Em meados do século XIX, em Portugal, a Typographia Rollandiana, inundava o mercado com as suas edições dos autores de sensação, edições traduzidas ou romances apócrifos, ou ainda romances sem autoria explícita "ao modo de Ana Radcliffe" ou "Frederico Soulié". Eram edições em formato ligeiramente mais reduzido do que a maior parte dos formatos de bolso actuais. Outras casas editoras se lhe seguiram.

Nas últimas décadas do século XIX, o Editor David Corazzi traz a Portugal, naquela que foi uma das suas poucas viagens para fora de França, um autor chamado Jules Verne que veio a Lisboa assinar, numa enorme campanha de marketing avant la lettre e grande cobertura de imprensa, os contratos de edição para língua portuguesa. Durante a cerimónia, David Corazzi anunciou a criação da série de luxo e da edição popular. Na viragem do século XIX para o século XX, a Parceria António Maria Pereira oferecia a edição popular das obras de Camilo, imitando Corazzi, na altura já falecido e cuja editora era então de seus herdeiros e cujo nome - de pouca dura devido a disputas familiares e má gestão - fora alterado de David Corazzi Editor para Empreza de Horas de Leitura.

Ambas as edições populares inundaram o mercado a ponto de serem ainda hoje encontradas em quantidade capaz de rivalizar com a colecção Vampiro ou a Livros RTP nos escaparates das lojas de alfarrábio.

Também por cá portante, se seguiram as duas linhas de edição popular então correntes na Europa. Aliás não será de estranhar que o autor Pierre Benoit, que tinha inaugurado em França no ano de 1953 a colecção Livre de Poche, tenha sido publicado em formato de bolso pela Civilização numa das suas diversas colecções populares.

A deliciosa história da criação da Vampiro e da Livros do Brasil e da sua ligação com a Civilização não a posso contar pois não tenho todos os dados mas lanço desde já o desafio ao Nuno Medeiros - creio que até merecia um livro.

Uma das histórias que gostava de conhecer - e essa não conheço de todo - foi a passagem da mítica colecção à qual (erradamente como já referi) se atribuí a primeira aparição do livro de bolso no nosso país, a colecção Livros das Três Abelhas, que começou a ser editada pela Editorial Gleba, para a Europa-América. Qual o papel de Lyon de Castro nessa transição e quais as relações entre a editora que marcou as primeiras décadas do século XX com as suas notáveis antologias de contos e a Europa-América no seu modelo comercial assente sobre o conceito do livro de bolso, são questões às quais gostaria de ter resposta.

E aqui chego ao grande papel que teve a Europa-América de Lyon de Castro enquanto modelo industrial e comercial. De facto a grande inovação foi a criação de todo um modelo editorial e empresarial tendo por base o conceito do livro de bolso. Nada nesse processo era novo excepto a sua dimensão. Havia já várias editoras com gráfica própria, havia várias colecções e vários tipos de livros distribuídos fora do canal Livraria. Nunca, contudo, uma gráfica, a sua maquinaria, o tipo de papel, etc. tinham sido pensados em função de uma estratégia global de produto. Nunca antes a cadeia de distribuição tinha sido alargada a tantos pontos fora da habitual cadeia de distribuição dos livros. E aí, bem como nos sistemas de trabalho editorial (a tradução e revisão, sobretudo no que isso acarretava de bom e mau), a implantação de uma estratégia global foi efectivamente algo de inovador.

A Vampiro da Livros do Brasil e as suas seguidoras colecções de policial (da Minerva, da Bertrand/Ibis, da DH, etc.) nunca conseguiram ter a projecção presencial das ediçôes da Europa-América, e se estiveram próximas foi porque lucraram com o exemplo desta. Em termos de quantidade e meios, a única editora capaz de rivalizar com a Europa-América, mas que nunca acabou por fazê-lo pois optou por ocupar um segmento de qualidade bastante inferior, foi a Agência Portuguesa de Revistas/Empresa Nacional de Publicidade, editoras que surgem de embrião na empresa do Diário de Notícias e cuja história de fusões, vendas, mutação de nomes, e muito mais, daria um grande livro sobretudo pela influência social das suas publicações.

Foi da proliferação do policial de má qualidade (em boa parte causada pela sobre-exploração da fórmula) que derivou uma certa ideia de falta de qualidade associada ainda hoje à edição de bolso. A Europa-América, numa fase já tardia, caiu demasiado no logro da edição sem critério de qualidade editorial que mais ainda afundou a imagem do livro de bolso pois as traduções, por vezes verdadeiros crimes de lesa-conteúdo, já não garantiam pelo preço a compra da parte de um público mais educado e selectivo.

Pode dizer-se muito bem ou muito mal da Europa-América de Lyon de Castro, mas tem de se reconhecer a coragem deste em ter montado um pequeno império com base numa estratégia editorial, comercial, logística e industrial que lhe granjeou um pódio de entre todos os posteriores imitadores.

Só não digam que Lyon de Castro foi o introdutor do Livro de Bolso em Portugal porque não é verdade.

6 comentários:

  1. Excelente texto, Hugo.
    Só mais uma nota, em jeito de anedota, o Alan Lane, da Penguin, dizia que a ideia de fazer o livro em formato de bolso (mais com design e qualidade gráfica, que caracteriza o LdB da Penguin) foi-lhe dada durante uma viagem de comboio, para Bath (salvo erro) pela sua autora Agatha Cristie.

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  2. Nesse caso podemos até chegar ao cúmulo de afirmar que a Agatha Christie é claramente responsável pela má fama do policial e do policial de bolso no nosso país...

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  3. Bastante informativo e agradável de ler. Gostei.

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  4. Óptimo Hugo Xavier. Trata-se de um excelente contributo para o melhor conhecimento da edição em Portugal.

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  5. Excelente texto a que a minha costela gestionária acrescentaria: «...não tão recente e de replicação cada vez mais...urgente».

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  6. Pi Cheng, ferreiro chinês, criou moldes antes de Gutenberg, no entanto o segundo é que foi o verdadeiro dinamizador dos tipos móveis. É claro que estou a ser um pouco vago, mas é só para que se pense se é realmente importante saber quem foi de fato a primeira pessoa a introduzir ou aquela que foi capaz de fazer vincar.
    O melhor seria cada um ficar com os créditos devidos.

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