8/27/2013

'Amazonificação', Grupos Editoriais e Espírito do Livro

 

O tempo de férias foi propício à reflexão sobre importantes notícias que, mais uma vez, agitam as águas do mundo editorial deixando perceber que estão em curso novas transformações relevantes, e com implicações que não podem deixar de nos inquietar. Para simplificação de raciocínio, centro-me nas informações que vão chegando sobre os movimentos que se registam no universo Amazon, e naqueles que a partir da fusão entre a Penguin e a Random House se perspectivam no domínio dos grandes conglomerados editoriais.

As posições críticas que tenho manifestado relativamente à entrada de empresas tecnológicas (Amazon, Apple, Google) no mercado do livro, nomeadamente ao afirmar que estamos perante “… a intrusão de novos players que, estando no negócio editorial e livreiro, não estão no mercado da cultura…”, estão necessariamente presentes nas minhas apreensões relativamente ao futuro da leitura, independentemente do suporte físico que venha a predominar - impresso ou digital.
Neste contexto, não me surpreendem os artigos e notícias sobre a Amazon que surgiram nas últimas semanas: «New Amazon Patent Seeks to Add “DVD Extras” to eBooks» (artigo de 5/7/2013, publicado por Dean Fetzer em http://litreactor.com/); «Monopoly achieved: An invincible Amazon begins raising prices» (artigo de 8/7/2013, publicado por Alex Shepphard em http://www.mhpbooks.com/); e «Washington Post vendido ao fundador da Amazon» (notícia de 5/8/2013, em http://www.publico.pt).

Tudo se encaixa numa estratégia da Amazon, que oportunamente considerei “…de promoção e liderança da edição digital, que lhe seria bastante mais rentável do que o logisticamente complexo e oneroso comércio electrónico de livros impressos”. No entanto, o bem-sucedido desenvolvimento de conteúdos editoriais próprios e o estabelecimento de parcerias com editores de referência, associado ao encerramento de prestigiadas livrarias independentes e ao desmantelamento de importantes cadeias de livrarias, fazem crer que a Amazon pretende ir mais longe na sua estratégia e constituir-se como temível candidato à liderança do mercado editorial e livreiro, também no domínio do livro impresso.
À luz desta evolução, compreende-se melhor o porquê dos grandes movimentos de concentração iniciados com a fusão Penguin-Random House, à qual, conforme «This is what the publishing industry will look like if the Big Six become the Big Four» (artigo de 20/11/2012, publicado por Zachary M. Seward em http://qz.com/), se poderá seguir a consolidação entre os já de si gigantes HarperCollins-Simon & Schuster, e vir mesmo a provocar a reacção da Hachette e uma subsequente passagem a Big Three. As consequências não se limitarão aos efeitos referidos em «The Victims of the Penguin & Random House Merger: Literary Agents» (artigo de 27-11-2012, publicado por Ella Delany em http://www.thedailybeast.com/).

Estamos perante o contra-ataque dos grandes grupos editoriais, legítimo, mas tendente a agravar a já de si desequilibrada relação de poder face aos editores independentes; são também evidentes os riscos de a edição literária sofrer uma ainda maior degradação em favor do predomínio de bestsellers de literatura ligeira, e de a diversificação e pluralidade da oferta se verem substancialmente reduzidas. O cenário apresenta-se pouco risonho. O que não é novidade. Nos cinco séculos de vida da palavra impressa, têm sido muitas as ameaças de sobrevivência consideradas fatais para o futuro do livro e da leitura, incluindo a antevisão feita há uma centena de anos anunciando que… a então aparecida bicicleta ditaria a morte do livro!
Mas o livro tem uma magia especial. Citando Padre António Vieira: “O livro é um mudo que fala, um surdo que responde, um cego que guia, um morto que vive”. E lembrando palavras proferidas por José Saramago em Outubro de 1995: “É do leitor que todos nós dependemos e crise, se houver, é da leitura. Só há crise da leitura se houver crise de curiosidade, se o ser humano se transformar num ser sem essa espécie de «bexiga incómoda» que é a curiosidade que nos vai levar a saber um pouco mais do que aquilo que sabíamos.”

Na conjugação destas duas citações, encontro o ‘espírito do livro’. É aqui que vejo o potencial de resposta aos desafios que antes enunciei. Acredito que a curiosidade humana é inesgotável e a cultura da palavra escrita permanece viva nos leitores, autores, editores e em todos quantos vivem no mundo dos livros. Estou convicto que, nesta guerra sem quartel, sairão vencedores os que melhor interiorizarem a aventura que cada livro constitui. Não forçosamente os maiores, mas os melhores.

Duvido que a ‘amazonificação’ prevaleça, acredito no sucesso de grupos editoriais que integrem e respeitem os valores do livro, e estou convicto que se manterá a importância de editores independentes que tenham arte, e competência, para fazer valer uma relação personalizada com autores de relevo, em simultâneo com critérios editoriais de excelência, chancelas de prestígio, comunicação eficaz, uso apropriado das potencialidades digitais, e partilha efectiva de serviços logístico-administrativos.

3 comentários:

  1. Ótimo artigo, do qual estou plenamente de acordo. Acrescentaria o facto de a «mundialização» da ação Amazon» levar a que haja uma muito mais rápida hiperconcentração editorial que afete também mercados periféricos como o nosso.

    Quando a guerra é mundial, todos os países são importantes e para que os Grupos não «permitam» que a Amazon se «estabeleça» no mercado de língua portuguesa irão obrigar-se a um esforço acelerado de aquisição no Brasil e, em alguns casos, em Portugal, assim como já está a acontecer em Espanha.

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  2. Obrigado, Nuno, pela apreciação que faz.

    Concordo plenamente com a sua antevisão dos efeitos extensivos que a hiperconcentação editorial em curso vem ganhando, e a hipótese que venham a fazer-se sentir em Portugal. Julgo mesmo que se trata apenas de uma questão de tempo/oportunidade. E talvez não esteja errado, quando prevejo que os grupos portugueses que se constituíram e cresceram sem uma raiz editorial, estarão mais vulneráveis perante o eventual interesse de grupos internacionais.

    Por experiência própria, acho que nem tudo será necessariamente mau se tal vier a acontecer. Tudo depende do código de conduta que sigam.

    AMAZONIFICAÇÃO é que... NÃO, OBRIGADO!

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  3. Por algum motivo a Amazon.com.br só se dedica a e-books (por enquanto).

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