10/30/2013

O Teatro do Leitor

Stairs, por Rein Jansma, in Biblioklept

A ausência de uma sequência narrativa nos moldes em que a concebemos para o texto narrativo, com coordenadas espácio-temporais mais aturadas, e de onde emerge a figura mediadora do narrador, distingue o texto de teatro. Neste tipo de texto, as personagens falam, as localizações são anotadas e as indicações cénicas sinalizam a dimensão espectacular. Trata-se de uma história, mas também de uma forma específica de escrita que convida o leitor, desde o início, a sobrepor-lhe um código de representação que não é, sobretudo, textual, antes teatral e cénico. O texto é, assim, instrumento que insufla novas vidas ao palco. A actualização desse outro código induz o leitor, espécie de encenador em primeiríssima mão, a transpor o que está a ler para a dimensão do palco, ainda que, neste primeiro fulgor, imaginado (Pinto, 2009).

É pela imaginação, e não pelas considerações, opiniões, juízos de um narrador, que as falas das personagens se combinam entre si, e com outras acções, resultando na contracena que transforma a condição dos corpos; ao imaginar, o leitor também consegue encarnar, outra vez em primeira mão, cada conjunto de falas que, na sua integralidade, se equivale a uma voz identitária, que mesmo na página plana demarca um percurso pela cena; o cenário envolve a intriga, avivando-se a cada momento decisivo da acção, num grau superior ao que muitas vezes acontece no teatro contemporâneo, onde, frequentemente, o elenco, ou seja, o conjunto de todas as personagens, subalterniza a informação de cariz espácio-temporal, atendendo à limitada capacidade de processamento do espectador. Pela página, embora o leitor também não esteja isento de restrições de processamento (Stanovich, 2000), personagens e informação espácio-temporal nivelam-se mais, em face do esforço convergente da imaginação interpretativa.

Como é que estas particularidades do texto de teatro se podem e devem relacionar, no âmbito da escola, com a competência interpretativa dos alunos é matéria que deve ser objecto de cogitação, pelo que acrescenta à educação e à leitura. A seguir à correspondência grafema/fonema, o que de mais fundamental encerra o acto de ler é a competência de fazer corresponder um novo conjunto de sentidos a um objecto de decifração e análise, transformando-o. A maneira como o aluno se exprime acerca de um texto origina o seu duplo, com o qual estabelece relação privilegiada (Iser, 2000).

O texto de teatro, em contraste com o narrativo, apenas sugere uma história, delineia personagens, anota tempo e espaço e exige em troca a proposta de uma intriga cénica exequível. É neste hiato entre o que o texto dá e o que exige do leitor que a imaginação, seleccionando e verificando pistas de sentido, tal qual detective ensimesmado, consegue assegurar um contínuo de processamento de informação que culmina na emergência de uma interpretação. A tríade “texto, imaginação, interpretação” é fundamental para o sustento anímico do leitor, e do aluno, um leitor em treino regular. Lendo textos de teatro, o aluno desenvolve por via mais directa a destreza mental necessária para se assumir como intérprete, um «solista» que, comunicando-se aos outros, desvenda os meandros do conflito para dizer algo de novo.

Isabel Pinto

Referências bibliográficas
ISER, Wolfgang, The Range of Interpretation, New York, Columbia University Press, 2000.

PINTO, Isabel, Leitura do Texto de Teatro: Teoria, Prática e Análise, Dissertação de Doutoramento na área de Estudos Artísticos, apresentada à Faculdade de Letras da Universidade de Lisboa, 2009.

STANOVICH, Keith E., Progress in Understanding Reading: Scientific Foundations and New Frontiers, New York, The Guilford Press, 2000.

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